Um profundo silêncio

Luciana Frassati

São cinquenta anos que Pier Giorgio nos deixou; todavia, meu discurso se torna sempre mais denso e vislumbra cada vez mais as nuances daquele que foi o seu. Pareceria quase orgulho afirmar isso; mas apenas após ter a ciência aprofundada e amadurecida pelo tempo, considero hoje complacentes e apressados os julgamentos dados sobre meu irmão naquele longínquo ano santo de 1925.
Hoje, de repente, no retorno deste grande acontecimento, se descobre nele o eco exultante e ao mesmo tempo meditativo que o induziu escrever: ”A paz esteja em sua alma… qualquer outro dom que se possua nesta vida é vão como vãs são todas as coisas do mundo”. Este é o leitmotiv que invade seu animo nos meses que antecederam aquele terrível 4 de julho, leitmotiv ao qual quase em contraponto ele colocava outro: “ Agora estou próximo de colher o que plantei”.
Dois meses depois já havia colhido. O que? Um funeral, se pode responder, que deu à sua humildade o tom do triunfo; mas não era que um sinal, digo melhor, um alarme, para aqueles que chegaram até a considerá-lo um pobre ser que não tinha nada de melhor para fazer do que ir à igreja todos os dias”. Aquele triunfo era um sinal de conforto e ao mesmo tempo de consternação; e não por acaso foram os pobres a revelá-lo e apenas eles, entre os quais a sua bela figura alcançava o anonimato, às vezes carregada de problemas, mas sempre atenta na participação ativa e concreta dos problemas deles.
Quais virtudes tinha então Pier Giorgio escondido de nós que nem mesmo naquele grande momento nos sentíamos aterrorizados pela avalanche da incompreensão com a qual poderíamos tê-lo sufocado se ele não tivesse estado em contato direto com uma compreensão bem superior, preparada a perdoar também a falta da nossa? Sob essa luz de misericórdia sobrehumana, Pier Giorgio teve o dom de compreender a tudo e a todos.
Nos foi dado apenas hoje conhecer aquele jovem, obscuro até julho de 1925? Parecia fácil na época descobrir a sua lealdade, sua pureza e sua coragem – mesmo nos sendo desconhecidos os vários episódios inerentes a elas – já que ele era, ouso dizer, a expressão física desses três raros dons, suficientes para catalogá-lo entre os” bons”.
Apesar de agraciado com outras benemerências, ele continuou, no decorrer destes cinquenta anos, a ser considerado tal, mas ninguém soube a que preço de solidão e tolerância do sarcasmo alheio (para usar uma palavra um pouco forte, porém orientadora), ele conquistou e teve seladas suas grandes virtudes. Portanto, apenas através do mosaico de centenas de testemunhos e sobretudo de pensamentos colhidos nas cartas, se pode compor sua verdadeira personalidade, forjada às vezes por fatores contrastantes que unidos formam um maravilhoso todo, difícil de expor de forma breve.
Nas cartas pode-se descobrir o menino, o jovem do quotidiano que, já estudante do Politécnico, não esquece, por exemplo, nas saudações, de nomear um a um os serviçais, os amigos da casa, concluindo muitas vezes seus textos com o envio de aperto de patas àqueles personagens muito próximos a ele, os animais. Ingênuas expressões de afeto, quase nostálgicas, ele expressou sobretudo na sua estada em Freiburg im Bresgau, quando, filho do embaixador da Itália em Berlim, hóspede da família Rahner , não surpreende nem a dona da casa – hoje centenária – ajudando-a a colher batatas em uma plantação longínqua da bela cidade alemã.
É mesmo das cartas que partem de um Pier Giorgio conhecido que se consegue descobrir aquele desconhecido. Nos encontramos como diante de um motor destinado apenas a tocar o chão e que improvisamente alça voo. Os voos de Pier Giorgio. Quais eram? Não certamente daquele jovem montanhês que coloca o pé em falso nas faldas das montanhas, mas de um guia seguro em direção à meta após os percalços do caminho. Ele treina para poder “no dia da colação, escalar o Cervino” ( N.T. : Cervino é um alto pico dos Alpes). A agonia, a pouco tempo de distancia do coroamento de seus estudos, que teriam permitido que ele, como engenheiro de mineração, descesse entre aqueles a quem eram proibidos auroras e crepúsculos, foi seu Cervino, seu mais alto pico “em direção à beatificação”.
A caridade assim como a fé, eram para nós como vestes dominicais: para ele foram pão diário, alimento inseparável a ponto de fazê-lo dizer: “ O que seria a fé se não fosse revestida de caridade?”. Declara em suas cartas a primeira como “única e verdadeira alegria”, mantém secreta a outra virtude e se limita quase que a concentrá-la em uma frase: “ Eu nutro uma especial predileção pelo Apostolo da caridade”. Nos perguntamos como aqueles a quem essas cartas foram endereçadas, não tiveram consciência nem por um instante de quem ele era. Como não descobriram a ingenuidade e a genialidade dos santos? A infinita modéstia de Pier Giorgio era selada com uma mordaça tão impenetrável que nem mesmo a poliomielite fulminante conseguiu despedaçar, mas apenas o grande cavalheiro que é o tempo.
E nós? Não fomos mais videntes. Poderia ter coberto as paredes com cantos de Dante, versos de Foscolo e para declamá-los usar como púlpito os pinheiros do jardim, ler São Paulo, Santo Agostinho, São Tomás, e se alguém tivesse dito que era poeta, filosofo, a resposta seria resumida a uma cordial risada. Talvez não a recebesse de mim, quando com apaixonado orgulho de colecionador, respondeu, diante da minha perplexidade sobre o valor dos minerais fechados numa vitrine: irão ao museu?
Vitrine e minerais não apenas foram aceitos pelo Politécnico de Turim, como o professor Cavinato, recebendo-os acompanhados um a um por seu nome latino, testemunhou que nunca lhe tinha ocorrido descobrir em algum de seus alunos tanta e tão diligente paixão. Pier Giorgio a colocava também nas visitas a museus, das quais restam muitos indícios em suas cartas, como o álbum de obras primas admiradas por ele. De pintura se falava em casa, mas apenas ele aprofundou-se.
O arco de sua inteligência abraçava Dante e os minerais; o arco de sua alma a humildade, a fé, e a caridade, tudo acompanhado daquela que ele considerava também virtude: a felicidade. Escrevia-me a 14 de fevereiro de 1925, de Turim:
“Queridíssima, antes de tudo obrigada pela bonita carta… você me pergunta se sou feliz; como não poderia sê-lo? Até quando a Fé me der força, sempre feliz ! um católico não pode não ser feliz : a tristeza deve ser banida das almas católicas; a dor não é a tristeza, que é uma doença pior que qualquer outra. Essa doença é quase sempre produzida pelo ateísmo; mas o objetivo pelo qual fomos criados nos indica um caminho semeado de muitos espinhos, mas não um caminho triste: esse é alegria, também através da dor.”
Sua figura, seu semblante, seu límpido sorriso eram a origem e a razão de cada consenso acima dos possíveis mal entendidos de seus contemporâneos, das mesquinhas disputas dos jovens e acabava sendo a sua vestimenta, aquela mesmo que, ao nascer no sábado santo de 1901, lhe foi predestinada chamando-o “o menino da festa”.

“Ripresa”, 15 de julho de 1975

* Luciana Frassati Gawronska, (*1902 +2007)

Formada em Direito, escritora e poetisa. Entre seus livros destacam-se as biografias de Pier Giorgio o qual era seu irmão.
Amiga de todas as horas, grande incentivadora do processo de beatificação.
Casou-se com diplomata polonês Jan Gawronska em 1925. Vivenciou o drama da Segunda Guerra Mundial o qual relata em seu livro: O Destino passa por Varsóvia . Teve seis filhos entre eles: o jornalista Jas Gawronska e Wanda Gawronska, presidente da Associação Pier Giorgio Frassati de Roma.

Luciana Frassati Gawronska, (*1902 +2007)

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