A ”conquista” da santidade

De 1932 até hoje: a história do longo e árduo caminho da causa de beatificação reconstruída através de documentos, testemunhos e atos oficiais

Pier Giorgio Frassati, beato. A Igreja o indica como modelo de vida cristã. Faz isso oficialmente, a 65 anos de sua morte. Antes de colocar alguém sobre os altares, a Igreja cumpre acuradas pesquisas, exigindo, como confirmação divina do julgamento humano, as provas de um ou mais milagres. Em resumo, procede com pés de chumbo: um justo exercício de prudência. As pessoas, porém, querem os caminhos mais curtos. A fama de santidade de Pier Giorgio desabrocha no próprio dia de seus funerais, 6 de julho de 1925, em Torino. A respeito anota sua irmã, Luciana Frassati: “A rua, eram 9 da manhã, quase não continha as milhares de pessoas que acorriam de todos os lados da cidade. Aos muitos que já se tinham alternado pelos quartos de casa e que quiseram misturar suas lágrimas às nossas, se juntava agora a maré incontrolável de uma turba de desconhecidos, velhos e jovens, pobres e ricos.” A turba à qual se refere Luciana Frassati tem o semblante dos amigos de Pier Giorgio; dos indigentes que ele conheceu em sótãos insalubres, ajudando-os; tem a memória de quantos lembram sua caridade nutrida de fé pura.
Em 2 de julho, o então arcebispo de Torino, cardeal Maurílio Fossati, abre o processo informativo ordinário. Até 23 de outubro de 1935, em 232 sessões, são ouvidas 25 testemunhas (mas não sua irmã, inexplicavelmente), em parte convocadas pelo postulador da causa, o salesiano D. Francesco Tomasetti e em parte pelo Tribunal eclesiástico, chamado a cuidar do “caso pier Giorgio”. O material coletado foi enviado para Roma. E em Roma, na Santa Sé, entre 1937 e 1939, escrevem 6 cardeais, numerosos bispos, superiores de institutos religiosos, reitores de universidades, dirigentes de movimentos e associações, homens e mulheres simples. Todos pedem uma única coisa: “Proclamem santo a Pier Giorgio. É um exemplo para se imitar.”
Alguma coisa, porém, não dá certo. Em dezembro de 1941chega ao Vaticano uma citação “reservadissima” e anônima. Alguém coloca duvidas a respeito da integridade de conduta de Pier Giorgio fazendo referencia a um passeio feito na companhia de amigas no parque turinese de Valentino, jogando sombras sobre as excursões pelas montanhas organizadas junto com outros rapazes e moças e acenando, enfim, a uma afetuosa simpatia de Pier Giorgio nos encontros com a senhorita Laura Hidalgo. Tratam-se de insinuações, de falatórios. Nada de mais. Pensando-se hoje nas preocupações de então, nos vem um sorriso. Um passeio, à luz do Sol, em um parque; excursões programadas e feitas em grupo, de forma despreocupada, certo, mas moralmente séria; apaixonar-se por uma moça: todas coisas normais, normalíssimas. E bonitas.

Controvérsias esclarecidas

A “denúncia” influiu negativamente no voto da Sagrada Congregação dos Ritos, que naquela época cuidava também das causas dos santos: sete membros são a favor de Pier Giorgio, 5 pedem para confirmar o parecer após ulteriores acertos, um deles diz de pronto ser contrario a ver o jovem turinese indicado como modelo. A palavra passa ao Papa, Pio XII, o qual pede (12 de dezembro de 1941) que primeiro se prossigam as averiguações (“dilata et ad mentem”) e depois (4 de junho de 1944) dispõe o “reponatur”, ou seja, o arquivamento, confirmado ainda em 15 de janeiro de 1945 (“non expedire”). A causa, então, é bloqueada. As dificuldades, surgidas como conseqüência de suposições e não de provas, parecem não ter solução.
Passa também o furacão da Segunda Guerra mundial. Entre 1949 e 1951, a irmã, Luciana Frassati, colhe, por iniciativa própria, 900 peças, entre documentos, declarações, testemunhos. Um trabalho precioso o seu. Conclui toda a busca em uns vinte dossiês e informa ao Vaticano o que fez. Giovanni Battista Montini, então substituto junto à Secretaria de Estado, em 2 de julho de 1951, sob disposição de Pio XII, pede ao pro-prefeito da Sagrada Congregação dos Ritos, cardeal Clemente Micara, de confiar a um consultor a incumbência de examinar se a documentação da sra. Frassati era tal que justificasse o consentimento da reabertura da causa de beatificação de Pier Giorgio. A delicada tarefa foi dada a um franciscano conventual, padre Gaetano Stano, o qual a 22 de janeiro de 1953, com um relatório de 40 páginas datilografadas se diz substancialmente favorável à reabertura da causa, ainda que, precisa ele, “um julgamento adequado e conclusivo poderia ser dado apenas com a validação integral de todos os documentos recuperados”, cobertos naquele momento por uma cortina de segredo impenetrável também para ele, segredo que torna inexplicável o soterramento do processo de beatificação.
A obra da sra. Frassati e do padre Stano esclarecem todavia os pontos de controvérsia, do inocentissimo passeio (descobriu-se que do passeio ao Valentino participaram sete jovens, cinco rapazes e duas moças, e se confirma que na época Pier Giorgio tinha 14 anos), das excursões pela montanha, ao amor (intenso, puro, nunca declarado) por Laura Hidalgo.

O afeto por Laura

Giovanni Battista Montini torna-se Papa com o nome de Paulo VI. Em 1965, os salesianos, através de uma petição, pedem ao cardeal Arcádio Larraona, prefeito da Sagrada Congregação dos Ritos, o desbloqueio da causa. O cardeal, com uma carta datada de 18 de agosto de 1965, encarrega o jesuíta turinese padre Paolo Molinari de desenvolver uma investigação complementar que foi concluída em 17 de abril de 1967. O material recolhido por pe. Molinari é muito significativo: serve não apenas para dissolver qualquer dúvida, mas mais ainda, coloca em evidência a riqueza cristã de Pier Giorgio.
Solicitado hoje a falar sobre aquela sua investigação, pe. Molinari, com um educado ‘sem comentários’, prefere respeitar a reserva pedida então pelos vértices da Igreja. ”Posso dizer que as dúvidas foram todas dirimidas porque todas são absolutamente sem fundamentos”, afirma. Devemos nos perguntar se não havia malevolência no que dizia respeito ao jovem turinese, malevolência que encontrou sua “obra prima” na voz, falsa, colocada para circular não se sabe por quem, de se ter encontrado o corpo de Pier Giorgio em atitude descomposta, desesperada.”
Todas bobagens sem sentido. Algumas palavras pe. Molinari usa para falar sobre o afeto de Pier Giorgio por Laura Hidalgo: “É a meu ver uma das condutas mais heróicas de Frassati. Temia que o seu eventual noivado com a Hidalgo pudesse provocar, por vários motivos, o rompimento do casamento de seus pais. Antes de se tornar obstáculo ao vínculo sacramental de seus pais, renunciou voluntariamente ao seu sonho pessoal de amor.”

O desejo do Papa

O clima geral, se compreende, melhorou notadamente. Mas não aconteceu nada de novo até 1974. A 21 de agosto daquele ano, o cardeal Giovanni Villot, secretario de Estado, pede ao Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos (agora separada daquela dos Ritos) para reexaminar atentamente o capítulo referente à Pier Giorgio: “É um desejo do Papa”, especifica. Finalmente cai o segredo. Todos os documentos coletados até então podem ser estudados por quem de dever (é encarregado novamente pe. Gaetano Stano). E o próprio pe. Stano, em 15 de novembro de 1976, apresenta as suas conclusões: “O abaixo assinado anuncia que os resultados das indagações trouxeram a desejada luz sobre os fatos duvidosos em questão, e portanto, dissipada qualquer dúvida sobre a retidão moral de Pier Giorgio Frassati, não vê que outro preventivo obstáculo pudesse impedir o desenvolvimento de uma causa cuja positiva relevância obteve tão numerosos e sérios reconhecimentos.” Em 20 de janeiro de 1977, Paulo VI remove o “reponatur” que se arrastava desde 4 de junho de 1944, decretando ao mesmo tempo o “procedatur ad ulteriora”.

Depois de 33 anos, o processo de beatificação se coloca lentamente em movimento. A irmã, Luciana Frassati, intensifica os contatos com padre Molinari, ao qual pediu ardorosamente que se ocupasse da causa. Em 20 de junho de 1977 a Ação Católica Italiana assume o papel de “atora”, ou seja, aquela que desejando profundamente a beatificação de Pier Giorgio, promove as ações

Uma cura impossível

O milagre aconteceu em S. Quirino, Friuli, pouco afastada de Pordenone, a 28 de dezembro de 1933. Domenico Sellan, classe 1892, já ferido nas costas durante a Primeira Guerra mundial, desde o dia 20 de setembro daquele ano, era obrigado a ficar na cama devido a uma séria lesão da primeira e segunda vértebras lombares. A sua cruz era chamada mal de Pott. Escreveu, a propósito, o seu médico, Dr. Dionísio Sina: “O Sellan perdeu completamente a sensibilidade dos membros inferiores, com repetidas manifestações de meningismo, constantes perdas de memória e dores de cabeça lancinantes. Examinando-o, constatei o agravamento do mal de Pott que traria como conseqüência a paralisia completa das pernas.”

Na manhã daquele 28 de dezembro de 1933, o então pároco da cidade, d. Pietro Martin, visitou Sellan, entregando-lhe uma pequena imagem de Pier Giorgio Frassati. Ficou com ele até a noite. “Ele”, contou o pároco, “quis imediatamente se confessar e quis que lhe trouxessem o viático. Sentiu imediatamente a recuperação de suas forças e com vivo fervor indicou de imediato como autor de tanta graça Pier Giorgio Frassati. As pernas voltaram a sustentá-lo. Vi-o muitas vezes descer da cama e subir as escadas com desenvoltura.”

Como havíamos documentado um ano atrás, no numero 7/’89 da Família Cristã, existem todos os elementos para falar da graça recebida: por um lado, uma cura definida como ‘impossível’ pelos médicos; por outro, a melhora clara, imediata, duradoura. Domenico Sellan (casado e com filhos), depois do prodigioso acontecido, por muito tempo não teve problemas dignos de nota. Morreu dia 17 de janeiro de 1968.

necessárias para tal. A primeira é a escolha do novo postulador. É nomeado o jesuíta padre Paolo Molinari. Em 12 de junho de 1978, papa Montini ordena que seja emitido o decreto sobre a Introdução da Causa. Recomeça-se. Depois se torna vice postulador o religioso Gustavo Luigi Furfaro, dos Irmãos das Escolas Cristãs fundadas por S. Giovanni Battista De La Salle.
O processo apostólico sobre as virtudes se desenvolve junto à Cúria Diocesana de Torino de 16 de junho de 1980 a 29 de julho de 1981. O Tribunal constituído pelo arcebispo, cardeal Anastásio Ballestrero, reúne-se 69 vezes, ouve cerca de 30 testemunhos e em 31 de março de 1981 se cumpre, muito importante, o reconhecimento canônico dos restos mortais de Pier Giorgio. Conta irmão Gustavo Luigi Furfaro: “Encontramos intactos os lacres colocados na caixa mortuária antes que o corpo fosse transportado ao cemitério de Pollone, província de Vercelli, para o sepultamento. O corpo de Pier Giorgio, estava intacto e composto. Nos lábios, um sorriso.”
A palavra passa novamente para Roma. Em 24 de janeiro de 1984, eis a nomeação do “relator” da causa na pessoa do jesuíta pe. Peter Gumpel. Sob sua direção, o postulador pe. Molinari redige a “Positio”, ou seja, “o estudo” da vida, das atividades, das virtudes de Pier Giorgio. Baseando-se, por sua vez, em dois grandes volumes da “Positio”, tratados com escrúpulos histórico-científicos, os teólogos e os cardeais preparam um parecer para o Santo Padre. Em 23 de outubro de 1987, depois da conclusão do Sínodo sobre os leigos, João Paulo II, devidamente informado, ordena que se lance o decreto sobre o heroísmo das virtudes de Pier Giorgio que se torna portanto, Venerável.

Os documentos do milagre

Para que o jovem Frassati se torne Beato deve-se encontrar e documentar um milagre. Em 28 de dezembro de 1988, a irmã de Pier Giorgio, Luciana, descobre providencialmente na casa dos Frassati, em Pollone, toda a documentação relativa à cura do mal de Pott do friulano (N.T.: nativo da cidade de Friuli) Domenico Sellan, cura ocorrida, dizia-se, milagrosamente, no dia 28 de dezembro de 1933 (falaremos a respeito à parte). “A redescoberta dos documentos aconteceu no mesmo dia do milagre, 28 de dezembro…” realça irmão Gustavo Luigi Furfaro.
O processo canônico referente ao presumido milagre abre-se na Cúria, em Torino, a 24 de janeiro de 1989, e conclui-se após apenas 6 dias, no dia 30. No dia seguinte, 31 de janeiro, o relato sobre a milagrosa cura do Sellan foi assinado pelo cardeal Anastásio Ballestrero: é seu último ato oficial; às 12h desse dia, o cardeal Ballestrero termina seu mandato pastoral de arcebispo de Torino. Irmão Gustavo corre para Roma e entrega o dossiê à Congregação para as causas dos santos. Os médicos antes (26/4/1989), os teólogos depois (30/6), e enfim (3/10) os cardeais participantes da Congregação vaticana citada acima, se dizem de acordo: o sr. Domenico Sellan readquiriu a saúde de modo rápido, completo e inexplicável de fato graças à intercessão de Pier Giorgio, para quem havia orado.
Em 21 de dezembro do ano passado foi assinado o decreto oficial no qual se reconhece que verdadeiramente existiu um milagre. A essa altura ficou certo. Pier Giorgio Frassati será proclamado beato.
Alberto Chiara

“Não entendemos logo a sua grandeza”

Fala a irmã Luciana. E de suas lembranças emerge o Pier Giorgio do dia a dia. “Descobrimos a sua plenitude cristã apenas depois da morte.” Tantos exemplos de generosidade.

Quem era Pier Giorgio para a senhora? Luciana Frassati faz um sinal para que esperemos um instante. Levanta-se da poltrona de sua sala turinese e pega um papel. São cinco linhas datilografadas ao todo. Eis, transformada em poesia pela irmã, a figura do jovem que colocou vontade, engenho, alegria, a serviço de Deus e do próximo: “Para mim você é dias, minutos e horas/ de um horizonte de espaço e tempo/cuidadoso ao lançar ramos frondosos /sobre estradas áridas de enganos onde jaz /a urna ardente de quem não amou”. “Sabe,“ explica, “compus estes versos recentemente. Pier Giorgio para mim significa um afeto forte, renovado, significa compreensão, segurança.”
A sra. Luciana tem quase 88 anos. Nasceu em 18 de agosto de 1902, em 24 de janeiro de 1925, casou-se com o diplomata polonês Jean Gawronski, viajando com ele por todo o Velho Continente e tornando-se mãe de sete filhos, (entre os quais o jornalista e euro deputado Jas). Escritora, poetisa, historiadora de Pier Giorgio; Luciana é a sua mais atenta biógrafa. Publicou numerosos livros sobre sua vida, sua fé, sobre sua caridade, sobre seu empenho sóciopolítico. Pacientemente coletou e enviou á imprensa as cartas de seu irmão.
“Fiz isso para entender”, assegura.” Sim, para entender como foi possível que Pier Giorgio tenha se tornado o Pier Giorgio Frassati hoje conhecido por todos. É verdade, em família, descobrimos a plenitude cristã após a morte. Pessoalmente nunca suportei certos retratos inexpressivos de meu irmão que, especialmente no passado, a cavalo entre as duas guerras mundiais, não demonstravam nem valorizavam sua inteligência, o seu completo envolvimento nos acontecimentos da época. Não, Pier Giorgio não tinha uma personalidade insípida.” E para prová-lo, a sra. Luciana levou mais de 50 anos rastreando uma santidade revestida de naturalidade.
Senhora ajude-nos a conhecer o Pier Giorgio de todos os dias… ”Fomos educados de forma austera. Era costume, na época. ”O amor dos pais pelos filhos e vice-versa existia. Sem dúvida. Porém, os relacionamentos dentro dos muros domésticos eram caracterizados por pouco calor, sempre, todavia, acompanhados por um grande respeito. “Ainda que, para falar a verdade, eu muitas vezes tratava papai com muita familiaridade: com ele brincava, aprontava tudo a que tinha direito”, afirma a senhora Luciana.
“Pier Giorgio, em casa, falava pouco ou nada sobre suas idéias, suas atividades externas”. Mas com a senhora trocava confidencias, não é verdade? ”Sim. Éramos muito unidos. Tinha-se formado uma espécie de cumplicidade devida, entre outras coisas, os termos percorrido juntos quase todo o caminho escolar (elementares, ginásio, liceu)” Luciana Frassati não esquece: “Ele repetiu duas vezes em Latim, eu apenas uma.” E acrescenta:” Nós nos protegíamos. Se na aula alguma coisa não andava direito com algum dos dois, o outro não falava nada para o papai e a mamãe.”
Continuemos explorando as recordações da irmã. “Não se pode deixar de mencionar sua saúde de ferro. Teve varicela. Mas depois, nem uma dor de cabeça, nunca um sinal de cansaço, mesmo se acontecia de dormir pouco. Uma vez o fiz zangar-se. Estávamos em Sauze d’Oulx, no inverno. Junto com meus amigos, não fui à Missa, indo passear de esqui. Ele me repreendeu, furioso. Um episodio isolado. Sempre me cobria de atenções, delicadezas. Quando andávamos de bike, ao fim de uma subida, ele me esperava sempre. Num dia de carnaval, passamos de trem por Ivrea. Parados na estação, acheguei-me à janela: um rapaz atirou um punhado de confetes em meu rosto. Pier Giorgio revoltou-se. Para ajudar-me atirou-se na água, em Forte dei Marmi, o dia em que o barquinho em que eu estava foi virado pelas ondas altas, jogando-me na água… Eh, a natureza. Ele preferia a montanha. Era um exímio alpinista. Eu privilegiava o mar.
“De certas atitudes suas entendi o real significado apenas mais tarde, após sua morte”.
Poderia nos dar algum exemplo? “Acontecia de vê-lo voltar para casa suado e muito agitado. Tinha, evidentemente, corrido para chegar na hora do almoço ou do jantar (nosso pai fazia questão da pontualidade). “O que será que ele aprontou para ficar desse jeito?”pensava. Com o tempo, depois de seu desaparecimento, descobri que passava horas ajudando os pobres de Torino, esvaziando seus bolsos com eles e ficando sem dinheiro para a condução.
Não recordo um ato mesquinho, uma malvadeza. Por caridade! Sabia rir e brincar. Mas sempre com discrição, com medidas. Quando ele estava, nas conversas em grupo, eram evitados sempre assuntos fúteis e palavras pouco polidas. Era generoso. E atencioso. No dia 15 de julho de 1923, quando me formei em Direito (com nota máxima e louvor), foi o único que me deu um presente. Meus pais me ofereceram um sorvete na Baratti e Milão. Ele chegou com uma cópia da vida de Santa Catarina de Siena de Joergensen. Li no bilhetinho que acompanhava o presente: “À boa e querida irmã, no dia de sua formatura, este livro, para que lhe sirva de guia no caminho de ascensão à perfeição espiritual”.

Créditos: Alberto Chiara

Urna que contém as relíquias de Pier Giorgio-Duomo de Torino

Pier Giorgio Frassati – “ Verso l`alto”

Maria Elisa de Oliveira  *

Conheci   Pier Giorgio Frassati, jovem italiano de Turim, filho de embaixador, morto em 1925 com apenas 24 anos de idade e, proclamado beato pelo papa João Paulo II em 1990 , por meio de um outro jovem  –  Eduardo Henrique da Silva, esse último, bem brasileiro , paulistano de nascimento.

Nossa amizade, que permanece até hoje, começou num curso de Teologia, em 1994 pouco depois da beatificação de Pier Giorgio. Na ocasião, Eduardo já revelava uma grande devoção e admiração pela vida de santidade deste jovem italiano cuja marca sempre fora o esquecimento de si mesmo, em benefício dos mais pobres  .

Contudo, sua devoção ia mais longe e já naquela época, Eduardo procurava por todos os meios, divulgar o nome de Píer Giorgio entre nós. Esse esmero incansável na divulgação da vida de santidade do jovem italiano não se limitava e ainda não se limita apenas ao Brasil  mas, vai em busca de outras fronteiras.

Aos poucos, a partir das leituras de livros , comentários e biografias sobre a vida de Pier Giorgio Frassati, cedidos por Eduardo, fui conhecendo os ideais que moviam o coração deste jovem beato e seu envolvimento responsável com a Igreja Católica, ao mesmo tempo que me comovia com sua devoção ao Santíssimo Sacramento e os grupos marianos.

O Curso  de Teologia, com a duração de dois anos permitiram, pela estreita e assídua convivência, que eu pudesse acompanhar um processo que ainda hoje se dá, de entrelaçamento e feitura de almas, na busca pela santidade, entre esses dois jovens, tão distantes no tempo, lugar e na condição social e, me agrada nomeá-los juntos  –  Píer Giorgio Frassati e Eduardo Henrique .

Nossas conversas diárias giravam quase sempre em torno da vida de doação de Píer Giorgio, que   aliás Eduardo conhece em detalhes, fruto de suas incansáveis pesquisas, a ponto de dar a impressão, por vezes, de que ele próprio o acompanhara em diversas ocasiões.

Todo esse amor e admiração pela vida do jovem beato ganhava mais cores quando, geralmente aos sábados, após as aulas íamos alegres ao encontro da irmã Luiza Angélica Mortari, de alma extraordinária e, que entrara no Mosteiro da Visitação, no bairro da Vila Mariana em  São Paulo, com apenas dezesseis anos, vindo a falecer em 2007 ,  em odor de santidade.

Soube mais tarde que Eduardo ganhara da referida irmã um exemplar do Jornal l `Osservatore Romano e nele, tomara conhecimento de uma foto estampada de Píer Giorgio no esplendor de sua juventude. Bastou esse imagem para que o interesse de Eduardo pela vida do jovem italiano se acendesse como uma chama ardente que se mantém alta e vigorosa,

A partir daí, a vida e a missão desse jovem brasileiro se concentrou em difundir a vida de heroísmo cristão de Píer Giorgio. Inúmeros mosteiros e conventos em solo brasileiro que  possuem em suas dependências imagens e resumos dos principais feitos desse jovem beato são o resultado do seu trabalho infatigável de divulgação.

Nomeio, em especial, o Mosteiro Cristo-Rei   das Dominicanas de São Roque em São Paulo que na pessoa da monja, Madre Carmem Dulce da Santíssima Trindade- Marcondes Machado-, amiga de Heitor Villa Lobos e professora de música da Faculdade Santa Marcelina, Eduardo sempre encontrou apoio e incentivo na divulgação da vida de Píer Giorgio Frassati.

Do rico tecido, por sua vez,da curta existência do jovem italiano, gostaria de ressaltar, ao menos, dois traços: o convívio e a amizade e sobretudo a sua contagiante alegria de viver (la gioia de vivere) de que dão testemunho todos que com ele tiveram o privilégio e sobretudo a graça de compartilhar de seus ideais e construção do Reino. Luciana Frassati sua irmã, soube como ninguém  revelar estes dois aspectos, em detalhes.  Numa obra de sua autoria e traduzida para o espanhol – Píer Giorgio Frassati: los dias de su vida, o leitor pode acompanhar as iniciativas de Píer Giorgio sempre afeito ao contato com os outros, aos grupos de jovens e sociedades, como meios para fazer o bem e praticar a caridade “sem que os participantes tivessem plena consciência disso” como comenta sua irmã. Amante do alpinismo, sempre que pode Píer Giorgio manifesta sua preferência pelas montanhas – lugar ideal para as reuniões com os amigos. O importante era encontrar oportunidade para estar juntos sob a inspiração de uma fé cristã. E, mais uma vez, é sua irmã que comenta, o jovem italiano encontrará na alegria e no sorriso, as armas perfeitas para reunir participantes tão distintos entre si. As excursões montanhesas se revelariam, ainda sob as anotações de Luciana, ocasiões preciosas para desenvolver o espírito fraternal e comunitário sempre com o cuidado de não permitir uma excessiva intimidade.

Com estas qualidades e outras que não caberiam em mil páginas, Pier Giorgio Frassati foi considerado por João Paulo II , patrono e guia espiritual da juventude acadêmica, dos jovens universitários de nosso tempo e fonte de inspiração dos jovens leigos.

* Professora aposentada da Unesp – campus de Marília/SP, Mestre em Filosofia pela PUC/SP e atualmente docente da Faculdade de Filosofia de São Bento/SP.

O meu Pier Giorgio Frassati

Gustavo Luigi Furfaro*

Profética soa a frase que se lê sobre o túmulo de Pier Giorgio: “Por que procurais entre os mortos aquele que está vivo?”
Assim como foi a intuição da mãe, Adelaide Ametis, pintora famosa, que quis circundar o caixão de Pier Giorgio com painéis, pintados por ela, nos quais, como que em um simbólico jardim, pintou um ornato de flores e interpretou-o com os dizeres evangélicos das Bem-aventuranças: ao lado de um grande maço de lírios, escreveu: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus”; no painel rico de rosas e flores variadas, escreveu: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus”; no painel decorado com humildes flores, escreveu: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque serão chamados filhos de Deus”.
No breve espaço de 24 anos, soube testemunhar com intensidade de obras e com heroicidade, que a santidade é patrimônio de cada condição, mesmo lá onde as premissas não parecem ser tão favoráveis. Não teve, seja na família, seja na escola, seja na sociedade que freqüentou, aqueles que poderíamos definir como “pedestais” sobre os quais construir a santidade, como encontra-se em tantas biografias de santos. Em uma plena e sofrida correspondência à ação da graça, que forma o tecido potente de sua construção, soube criar sozinho os degraus para subir, traçar sozinho os seus caminhos. Sabia em quais fontes alcançar o material de construção: na casa de Deus a palavra orientadora, o pão que dá a força, a vigilante presença materna: palavra, pão, presença das quais fazia-se portador pelos caminhos do mundo.
Em um contexto comum a tantos jovens de então, assim como de hoje, levou uma vida não muito comum em certos aspectos. Podem variar as circunstâncias e as situações, não mudam muito as dificuldades a serem superadas. Foi intuição e mérito saber orientar o passo, em seu ambiente, para que a vida tivesse um significado. Revela-nos isso em uma carta a um amigo: “Viver sem uma fé, sem um patrimônio para defender, sem sustentar a verdade em uma luta contínua, não é viver, mas ‘ir vivendo’. Nós não podemos nunca ‘ir vivendo’, mas viver!”
Mesmo que fosse somente essa a sua mensagem, já teríamos algo para o qual sermos atraídos pelo exemplo. Como ideal pode ser assumido por todos: por quem tem vinte anos e por quem tem muito mais. Pode ser uma admoestação e um estímulo para o leigo e para o consagrado; por quem tem grandes capacidades e por quem entende valorizar até mesmo um único talento; para quem tende à ação e para quem, todavia na forçada inércia, tem entre as mãos uma enorme potência redentora. Pier Giorgio é de uma surpreendente atualidade: não é um santo “de altar”, é companheiro de caminhada.
Falando dele surpreendemo-nos a usar uma terminologia atual: falamos de família em crise, de escola em agitação, da sociedade em evolução com os ricos demais e os extremamente pobres, de associacionismos que empenham ou então falem, de amizade que eleva ou degrada, de tempo livre que constrói ou destrói. Em sua vida existem todos esses elementos: nele descobrimos as soluções positivas.
É por esse motivo que o sentimos tão próximo, o nosso orar não é tanto uma súplica, mas um diálogo com ele, que ainda nos fala através das numerosas e reveladoras cartas e através dos exemplos, para aprender de sua “sabedoria de Deus”, acolhida e cultivada na união com Cristo palavra e pão, ainda antes que na “ciência de Cristo”; para aprender uma via que se torne testemunho de cada dia e força transformadora da realidade cotidiana.
Foi saldo na fé e operoso no amor. Quanto mais aprofunda-se, não somente o conhecimento de sua vida, mas sobretudo a profundidade dos seus sentimentos, tanto mais se sente a atração desse jovem e, em sua companhia, parece que avançamos mais seguros, mais serenos, mais generosos, como acontecia nos tempos de suas memoráveis excursões e passeios nos campos.
Foi um magnífico “lutador paulino”, um autêntico contestador que sofria as conseqüências na própria pele, porque contestava por amor, nunca por aversão ou por rancor. Combateu para construir, nunca para destruir; lutou para edificar, nunca para abater. E quem contesta e sofre na pele as conseqüências tem algo de heróico, algo daquele heroísmo evangélico que Jesus nos apresenta em sua vida e em sua palavra.
Lutou, contestou, sofreu as conseqüências na família, na sociedade, nas associações, na política, com os amigos, na escola. Simpáticas foram também suas vicissitudes na escola: era o aluno Frassati, não o filho do senador, que era julgado como promovido. A sua trajetória escolar não foi fácil e, talvez, não compreendida: também aqui lutou e sofreu na própria pele se, aos 24 anos, encontrou-se concluindo o Politécnico, não fácil, depois de ter feito 31 exames. Faltavam-lhe ainda dois exames para fazer e também a tese, na qual já estava pensando. O último exame seria em 4 de maio de 1925: tecnologia minerária, o ideal contrastado do seu futuro. Não pode fazê-lo: durante dois meses lutou e sofreu as conseqüências na própria pele também na morte. Paradoxalmente podemos dizer que teve tal destino também nos alternados acontecimentos do processo de beatificação e na própria morte subverteu as leis da dissolução.
E tudo foi sempre com um sorriso nos lábios, mesmo que se por dentro – e as cartas o confirmam em vários pontos – tumultuava a tempestade no mar e de vez em quando brotavam algumas lágrimas. Na própria morte respondeu com o sorriso (após 56 anos!) a quem dele se aproximou. Sobre ele muita coisa foi escrita: são mais de dois mil artigos de jornais e de revistas em todo o mundo sobre ele, aos quais somam-se outras publicações, comemorações… A sua figura conquistou almas de adolescentes e de homens maduros em todas as partes do mundo. À sua vida e ao seu exemplo inspiraram-se jovens que não somente quiseram conhecê-lo, mas que, no empenho de imitá-lo, realizaram também eles um empenho de santidade e agora estão a caminho da glorificação. Pier Giorgio cumpriu o empenho que o Concílio Vaticano II confia aos leigos: “A todos os leigos, portanto, incumbe o plecaro ônus de trabalhar para que o plano divino de salvação atinja sempre mais a todos os homens de todos os tempos e de todos os lugares da terra.” (LG 33).

* Irmão das Escolas Cristãs foi vice postulador no processo de beatificação.

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